segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Capítulo 22

Casa dos tios, 02 de Janeiro de 2012.

A garota de olhos claros acordou cedo. O barulho da movimentação das pessoas na casa e o sol entrando pela janela a fizeram se esforçar para abrir os olhos.
Ela viu a hora, ainda era cedo, deitou-se em seu colchão outra vez e tampou a claridade com a coberta. Sua gatinha, presa no quarto com ela, pulava e corria de um lado para o outro, espreitando a movimentação pela janela, ansiosa por sair também.
Algum tempo depois, a garota se levantou. A mesa do café da manhã ainda estava posta e ela sentou-se para comer, após ter se trocado e colocado a ração da gatinha. Ela terminou de comer e foi para o sofá, tentar passar o tempo.
Ela sentia-se só. Uma caminhonete, alguns conhecidos, iam e voltavam de sua casa trazendo coisas enlameadas que, de certa forma, poderiam ser salvas. Voltaram na hora do almoço. Sua mãe contou a ela a situação. A casa estava completamente enlameada. Muita coisa se perdeu. Na parte mais baixa, a água chegou a 2,10 metros.
Ela quis ir ver, quis ir ajudar. A mãe não deixou. Disse que os parentes, alguns conhecidos e amigos, tinham ido ajudar. Logo, eles voltaram, deixando a moça à sós na casa outra vez.
A garota de cabelos castanhos chorou, queria desabafar, mas sabia que o caderno que guardava embaixo da cama havia ido pro lixo. Seus poemas, suas histórias, tudo perdido. Ela procurou pela casa, não encontrou uma folha que pudesse usar. Encontrou uma caneta azul que ficava ao lado da agenda de telefone da tia. Pensou em arrancar uma página, mas também pensou que não seria certo. Voltou à mesa, pegou um guardanapo de papel que ainda restava no pacote após o almoço. Escreveu, ali mesmo, o seguinte:
"É muito difícil você olhar para trás e ver que à dois dias sua vida estava como deveria estar e que, no dia seguinte, não havia mais nada. Pra alguém, como eu, que não via a hora de 2009 acabar, o dia 1º de Janeiro de 2010 foi traumatizante.
A chuva que não parava, água por todos os lados, levando embora tudo que eu tinha e gostava. Não gosto de admitir, mas as águas levaram também algo ainda mais precioso: minha esperança.
Eu tinha esperança que em 2010 minha vida fosse mudar, mas recomeçar tudo do zero não estava nos planos.
Você sabe qual é a sensação de perder algo que estava com você por sua vida toda? Bom, não sei explicar, mas é quase como se um pedaço de ti tivesse desaparecido. Todos te dizem que o importante é você estar vivo e bem, que os bens materiais você conseguirá novamente. O que ninguém para pra pensar, antes de dizer isso, é que você pode estar vivo, mas perdeu parte da sua vida ali e que, bens materiais podem sim ser recuperados, mas aquilo que tinha valor sentimental, aquilo que te era especial e que você guardava com todo carinho, nada vai substituir.
Hoje é dia 2 de Janeiro de 2010, estou na casa dos meus tios, usando roupas emprestadas e tomando conta da minha gatinha, a Milly, que ficou muito assustada com tudo isso e ainda está estranhando um pouco a nova casa em que está. Eu estou aqui sozinha, passando o tempo, escrevendo minha triste história em um guardanapo, enquanto meus tios, minha prima, mãe e padrasto estão lá em casa, tentando salvar o que sobrou e jogando fora o entulho que as águas deixaram depois de baixar.
A cidade de Guararema, onde nasci, mas nunca tive muito orgulho de morar, está vivendo sua pior catástrofe: Morros desmoronaram, casas foram inundadas, pessoas morreram, a cidade ficou isolada, alguns lugares (como aqui) estão sem luz desde ontem à tarde.
A situação está feia e estou bem desanimada, talvez esteja um pouco mais forte que ontem, depois de ter chorado um dia inteiro, mas ainda estou desnorteada.
Estou com saudade da minha vida e das coisas que sei que não terei mais. Pra falar a verdade, estou com vontade de sumir.
No momento não tenho planos e nem mesmo sei mais o que fazer diante de tudo isso. Bem, eu queria uma "vida nova", vou ter que me esforçar para construí-la agora. Eu queria "mudar" minha vida, bem, agora eu poderei fazer dela o que "bem entender".
Não vai ser fácil, mas agora é seguir em frente, porque atrás de mim...não restou nada."


As lágrimas que brotavam dos olhos da garota molharam algumas partes do guardanapo, borrando de leve a tinta da caneta que havia ali.
No final do dia, tudo o que era possível ser resgatado, estava no quintal da tia, manchando tudo de marrom, o barro com um cheiro forte de sujeira. Com ajuda da tia, da sogra do irmã e da cunhada, aos poucos tudo foi sendo lavado, sendo selicionado entre o lixo e uma segunda chance. Foram tempos difíceis mas, aos poucos, eles se reerguiam.

Um comentário:

  1. Legal! Seu estilo intimista é bastante agradável. Se me permite, vejo que desde fevereiro não atualiza. Eu também fiquei um tempo “fora”. Mas não fique tanto tempo fora não. Continue. Estamos juntos na blogagem, A. Narradora. Blogueira, aproveita e comenta meu “THE SMITHS, O CONTO” http://jefhcardoso.blogspot.com Ficarei grato. Abraço!

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